quarta-feira, 29 de abril de 2015

Endeusamentos, relativismo e pobreza

                                                                
            
    No Egito Antigo, os faraós eram considerados deuses. O povo todo os venerava não só como líderes e governantes, mas também como deuses vivos.

    Em Roma, os imperadores não eram oficialmente considerados deuses, mas queriam sê-lo. Tentavam à toda custa associar-se às figuras de alguns dos inúmeros deuses cultuados por eles, inventar em sua linhagem um ancestral deus, truques afins. E, na prática, certamente eram respeitados e adorados quase como se fossem tais, e depois da morte alguns foram divinizados.

    Já na era moderna, o tempo dos reis absolutistas, tivemos figuras como Henrique VIII, o homem das seis esposas; Luís XIV, o rei sol; e pensadores muitos que escreveram longamente sobre o poder divino dos reis, legitimando sua posição sobre a sociedade, seus mandos e desmandos, sob a ideia de que eles eram figuras divinas. Figuras que deviam ser seguidas e servidas e adoradas e, sobretudo, obedecidas, pois desrespeitá-los seria o mesmo que afrontar Deus o próprio.

    Hoje, nós não veneramos governantes (Ô, glória!) mas temos os nossos alvos de adoração e endeusamento também, o que é igualmente cômico ou igualmente trágico. Estou me referindo aqui a algumas parcelas da nossa tribo humana que escolhemos para colocar num pedestal, prestar a nossa reverência e a nossa baba: por exemplo, o povo do branco, o povo da toga, o povo do uniforme. Entre outros, é claro.

     Todo mundo entendeu, certo?

    Pois é, hoje, a nossa adoração é mais diversa e mais terrena. Nós nos ajoelhamos e colocamos submissos a um mais variado rol de deuses, humanos endeusados, pessoas que ganham essa posição relativa pelo poder, prestígio e respeito que - não raro, tolamente - nós, tão humanos quanto, damos a eles.

    Posição relativa, eu digo, porque de fato o é. Relativa. Construída. Não absoluta, não natural, não fundamental. E que, tão facilmente quanto foi erguida e concordada entre a boiada e os boiadeiros, pode ser desconstruída, desfeita, questionada, reformulada.

    O que estou querendo dizer aqui é que o príncipe não é especial de alguma forma, ele é feito especial pelo nosso comportamento perante a ele, diante dele. Não existe algo que está nele que é diferente. O que existe é uma reação para com ele que o torna assim. Todo o poder, a magia, a aura quase mística e o prestígio do príncipe, assim, é dado a ele, literalmente de bandeja, por nós, estúpidos súditos, por meio da nossa adoração, da nossa submissão, do nosso ato de ajoelhamento perante a ele. Tudo o que ele tem é dado. Da mesma forma com os faraós modernos: o doutor, o meritíssimo, o fardento a quem submissamente reverenciamos.

    Em todas as sociedades supracitadas, o critério utilizado e a natureza do poder dado eram ligados à religião e à religiosidade. Não podia ser diferente, já que aqueles povos eram muito religiosos, tinham parte fundamental de suas vidas, o centro de seus imaginários e explicações para tudo, regidas por e embasadas em religiosidades, mitos e crenças. Essa esfera da vida era muito importante para eles, e por ela eles escolhiam seus endeusados.

    De acordo, no mundo de dinheiro e aparências que vivemos hoje, os nossos endeusados o são por causa disso: eles são, na avassaladora maioria das vezes, aqueles cujas contas bancárias inspiram o maior suspiro; e, também e principalmente, são aqueles que - em matéria de falar, de andar, de vestir, de dirigir, de “viver” - podem fazer o melhor show, exibir o maior, mais imediato e vistoso espetáculo. O que nos impressiona à submissão, à reverência, à pequenez.

    Não me entendam mal. Não pretendo aqui fazer algum deboche, alguma provocação ou desconsideração. Nem atingir diretamente alguma religião específica, como o culto do jaleco. Tenho orgulho em dizer que me considero muito polida e civilizada para cometer barbaridades dessas. E suficientemente consciente do perigo das generalizações, também. O que pretendo aqui, na verdade, é só iniciar uma reflexão acerca da fluidez dos tempos, da maleabilidade constante dos paradigmas, o efêmero poder da convenção que vigora e o perene poder que o humano tem de construí-la. Desconstruí-la. Destruí-la. Reconstruí-la. Reformá-la. Adequá-la. Relativizá-la.

    O que pretendo aqui, ademais, é propor um questionamento: se tudo passa - e passa mesmo -, se tudo de aceitação geral que consideramos hoje uma verdade inquestionável provavelmente será amanhã ridículo, mitologia pura, ficção incientífica, por que fazemos as coisas que fazemos, sem pensar muito? Por que reverenciamos o que e quem reverenciamos?

    Será que não estamos sendo pobres demais, pequenos demais, tolos demais ao simplesmente seguirmos o rumo do trilho? O trilho cujo rumo alguém determinou, e que outro alguém pode facilmente desdeterminar e redirecionar? Será que não estamos indo aquém de nossa “natureza” - justo nós, humanos, que, dizem, somos os únicos animais racionais, e dessa forma temos o privilegiado lindo tesouro, poder e capacidade de criarmos razões para nós mesmos, de questionarmos o que existe e pensarmos independentemente, de não sermos governados por nada nem ninguém além de nossa própria cabeça?

    Se todos e cada um de nós, humanos, racionais, tem a sua própria cabeça (pelo menos, segundo reza a teoria), por que não usá-la, na prática? Por que não tirar a viseira e ter olhar mais amplo? Por que não distanciar-se da situação e pensar “fora da caixinha”? Por que não, como estou sugerindo aqui, comparar diferentes convenções de diferentes culturas e assim talvez enxergar como a nossa pode ser ridícula, como a nossa deve ser - na mais suave das hipóteses - problematizada, relativizada?

    Gostaria de lembrar aqui que a mesma lei que hoje tem o racismo por crime inafiançável já permitiu a escravidão. E a mesma lei que dentro em pouco explícita e oficialmente condenará a homofobia já teve a homossexualidade como crime - quase com status de pecado -, crime que recebia não só punição e expurgo mas "cura".

    E, não menos importante, gostaria de dizer que alguns daqueles que reverenciamos de fato merecem respeito e admiração. São profissionais verdadeiros, que fazem seu trabalho com disposição, alegria e entrega; pessoas íntegras que procuram levar a vida da forma mais digna possível. Mas, alguns outros, ou muitos, daqueles que reverenciamos... digamos que, não raro, se pararmos para pensar e observar a fundo, merecem muito mais o nosso desprezo que o nosso respeito. 

    Como eu disse no texto das moedinhas, nós temos um hábito lamentável de escolher muito mal os nossos heróis. Ou os nossos deuses...

    Pensar, que perigo! Repensar, que hecatombe!

    Ou não, né? Se nós vivemos a era do progresso, não a do retrocesso, tudo o que fazemos é no sentido de evoluir, certo?

    E quanto a endeusamentos... Ah, por favor, nós já devíamos ter passado dessa fase.
   

Nenhum comentário:

Postar um comentário