sábado, 4 de abril de 2015

Contra a escola integral

                                                                   
 
     Eu gosto de fugir do óbvio. Enquanto tantos falam de redução da maioridade penal e de corrupção, proponho que falemos aqui de algo diferente, embora igualmente relevante e intrinsecamente relacionado: a educação. Se tivéssemos uma educação excelente, quem sabe corrupção e crime juvenil não seriam temas que debatemos tão urgente e corriqueiramente.

    Há uma forte tendência, hoje, em favor da escola de tempo integral. Caminhamos a passos razoavelmente largos para uma difusão crescente deste modelo de instituição-ensino que absorve os alunos por um mais comprido correr de relógio, redimindo assim os pais dessa “obrigação”, e da preocupação com “o que os filhos se ocupam” durante as horas em que não estão na escola, ‘estudando’. Não bastasse essa disseminação estar acontecendo efetivamente, parece contar com a aprovação de muitas pessoas.

    Alguns dizem que a escola integral é uma opção admirável porque nela os jovens não têm tempo para ficar à toa, pensando de acordo com aquela velha máxima “cabeça vazia, oficina do diabo”. Outros dizem que ela é uma opção vantajosa porque nela (na maioria dos casos), os jovens têm acesso a diversas atividades - esportes, xadrez, lego, música, robótica, inglês - as quais, de outra forma, os pais teriam que procurar e contratar mesmo, por fora, com um gasto maior e o problema da mobilidade. Outros, ainda, argumentam que a alternativa é não só muito boa, em vários sentidos, como também correta, porque não devemos ficar mimando os nossos filhos, facilitando a vida para eles, dando-lhes tempo, atenção e conforto, sendo que o mundo não lhes dá nada disso, é cruel, exigente e competitivo, e o melhor que os pais têm a fazer é preparar seus filhos para ele, doa o que doer.

    Eu discordo plenamente de tudo isso.

    O primeiro fator que explica minha reserva, meu franco desgosto, em relação à escola integral remete justamente a esse último argumento favorável citado acima: o mundo já é cruel o suficiente sem que precisemos adicionar aí alguma impiedade dos pais para com os filhos. Não é questão de mimá-los, e sim de amá-los e querer para eles a mais feliz juventude possível. Não é questão de cair no extremo mimo, na desmedida proteção, e sim de alcançar um meio termo. Eles têm que criar responsabilidade? Sim, é evidente. E criarão. Criarão aos poucos, com nosso auxílio, nossa orientação, sob nossa tutela e acompanhamento.

    Mas, não vejo cabimento em submetê-los a tamanha pressão, sobrecarga e cobrança enquanto são tão novos. Não há necessidade. Tudo tem seu tempo. Não devemos esperar que crianças de 13, 14 anos lidem com carga horária e volume de deveres e informações semelhante àqueles que alguém de 21, 22 está acostumado. Depois dos 18, tudo aperta mesmo, e chega uma hora em que a vida de cada um está em suas mãos, somente, e não há nada que os pais possam (ou, realmente, devam) fazer para “aliviar” isso. Porém, até lá, é justo que deixemos as crianças serem crianças. A infância é um tempo precioso que passa rápido e não volta jamais, então por que maculá-la e manchá-la ao tentar "adultificar" as crianças, fazê-las crescer cada vez mais (desnecessariamente) cedo?

    Em segundo lugar, creio que mesmo as palavras “vantajosa” e “admirável” aplicadas à escola integral podem ser relativizadas. Quanto a reunir em um pacote só várias atividades, isso é vantagem e conveniência para quem, para os pais ou para os alunos? Para os alunos, certamente que não, pois muito mais beneficia uma criança ou jovem - qualquer pessoa, na verdade - uma diversidade de sociabilidades do que uma concentração delas. Passar prolongado tempo na companhia das mesmíssimas pessoas, no mesmo espaço, pode ser não somente cansativo e difícil como também, em alguns casos, desmotivante e danoso.

    Às vezes, o ambiente não é tão saudável quanto parece, tampouco as convivências são tão profícuas, e expor a criança a tudo isso torna-se até perigoso. E num contexto de escola integral, descobrir que este é o caso é mais difícil, tanto pela demagogia que não raro existe na escola - que também é um negócio e, como tal, naturalmente não deseja perder seus ‘clientes’ - quanto pelo escasso e breve tempo que é passado com qualidade entre pais e filhos. Quero dizer, das 6 às 10 da noite, digamos, todos os dias, pais e filhos, cansados da batida do dia, querendo sossego e descanso, e não mais preocupação, para já prepararem-se para o seguinte... Que espécie de diálogo existe aí? E não é justamente por causa disso - falta de diálogo - que muitas vezes acontecem episódios de auto-mutilação, desordens alimentares, bullying, depressão, sem que os pais saibam, percebam e possam ajudar senão quando já é tarde demais? Passar tempo além da conta fora de casa, longe da família, numa fase em que tanto precisa-se de ambos, pode provar-se bastante negativo.

    Numa escola integral, o aluno não tem tempo para “fazer nada” - de fato não tempo nem para si mesmo. Não pode ficar ocioso ao passo que, em contrapartida, também não consegue ficar produtivamente ocupado em outras coisas. Não é possível para ele, por exemplo, inscrever-se em um clube de escoteiro, de trilha, de poesia; dedicar-se a algo que ele simplesmente gosta, seja a leitura de romances, assistir a um bom seriado. Participar de encontros de jovens em seu entorno, fazer um trabalho voluntário ou estudar uma nova língua - além daquela (não raro, mal e porcamente) oferecida pela escola, que já dominam. Pois, quando chegam em casa, estão tão cansados que não querem devotar seu tempo a mais nada, a não ser ao mais puro e imperturbado descanso.

    Mesmo quando a escola é inquestionavelmente excelente, e o tempo ocupado da forma mais saudável, em todos os sentidos, quem disse que isso é bom? Que passar tanto tempo aplicado, cheio do que fazer, é desejável? Que um pouquinho de ócio não é, também, um investimento, afinal?

    Não é desconhecido o palpite de muitos cientistas de que não vemos tantos gênios hoje quanto antigamente não porque não os temos, mas porque não os deixamos florescer. Temos talvez milhares de gênios em potencial andando pela Terra, mas não os permitimos desenvolver todo esse potencial. Criar é inventar algo que não existia antes, e como alguém pode fazer isso quando passa a maior parte de seu tempo carregado com coisas que lhe são ensinadas por métodos padronizados e sistemas fechados, quando o tempo todo lhe ditamos o que ele deve memorizar e REproduzir?

    Steve Jobs esteve na faculdade por apenas seis meses e largou-a, mais tarde dizendo sobre isso que “desistir foi a melhor coisa que eu fiz. Pude me dedicar a coisas que eu realmente queria fazer”. E pessoas como Mozart (na foto, compondo, em cena do filme Amadeus), por exemplo, só foram quem foram porque tiveram permissão, liberdade e tempo para dedicarem-se intensamente ao seu talento, à sua paixão. Nossos filhos podem ser potenciais artistas soberbos - cozinheiros, pintores, músicos, escritores, inventores - e nós podemos (sem saber, equivocadamente) estar enterrando todo a sua potencialidade, desperdiçando seu talento e sua vocação, ao conduzi-los, por mais e mais tempo, a aprender aquilo que foi convencionado em algum ponto ao longo da história como o que todos devem saber.

  Ou deixamos as nossas cabeças brilhantes abraçarem sua genialidade, ou as corrompemos e diminuímos, fazendo-as acatar e resignadamente seguir as obrigatoriedades do mundo moderno, que, em aparente paradoxo, parece progredir num curioso retrocesso.

    Não me entendam mal, não estou advogando a ninguém que tire seus filhos da escola, do acesso a qualquer educação formal (nem estou dizendo que a universidade é algo ruim, apenas que devemos deixar que as pessoas se descubram, ao invés de dar a elas caminhos forçados). Estou, sim, esclarecendo minhas razões para ter extremo receio quanto ao custo e ao benefício da escola em período integral - ela que, pelo simples fato de acontecer em período integral, mais ainda cerceia as liberdades e capacidades criativas de nossos filhos na medida em que mais coisa ensina-os condicionando-os a um sistema, um sistema de fixas respostas e não de perguntas. Ela que, pelo simples fato de acontecer em período integral, pede mais adulteza dos jovens que o necessário, e reduz a um mínimo muito perigoso o tempo passado desses jovens com sua família, tempo este que - nesta fase da vida, mais do que nunca - precisa ser longo, constante e bom. Como é justo e necessário; como a vida, pouco mais tarde, já não permitirá.
   
    Pessoal, comentem aí embaixo! Gostaria muito de saber se alguém pensa semelhante (ou pensa o contrário) e acho que esse é um assunto - tanto quanto a corrupção e a redução da maioridade - que merece nossa atenção, preocupação, consideração, e tempo de debate. Não é coisa pequena pensar no futuro que queremos para o nosso país, futuro este que só construímos cuidando bem da formação, também a nível pessoal, completa, dos nossos pequenos.
   

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