quarta-feira, 8 de abril de 2015

O crime da prosperidade

                                                                       
    “Eu o vi dar um rápido, clandestino olhar por toda a minha sala; ele registrou seus limites estreitos, sua mobília escassa. Em um instante, ele havia compreendido o estado das coisas - havia me absolvido do crime da prosperidade. Estou moralmente certo de que se ele tivesse me encontrado em um cômodo elegante, deitado em um macio sofá com uma esposa bonita e rica ao meu lado, ele teria me odiado. Uma visita breve, fria, distante teria sido em tal caso o extremo limite de suas civilidades, e ele não mais me procuraria pelo tempo todo em que a onda da fortuna me mantivesse em sua crista. Mas a mobília pintada, as paredes nuas, a triste solitude da minha sala relaxaram seu rígido orgulho, e uma mudança suavizante havia tomado lugar em sua voz e em sua postura quando ele falou de novo.”

    O trecho acima reproduzido é uma passagem do líndissimo romance ‘O professor’, de Charlotte Brontë. A cena, de dois amigos se reencontrando depois de algum tempo distanciados, sintetiza genialmente esse que é um mal moderno que corrói amizades, aparta familiares, distancia enamorados e, sim, instaura-se sorrateiro em nós, tornando corrompida e falsa a nossa cordialidade: o crime da prosperidade.

    Quantas vezes já não nos deparamos com a roda da fortuna em movimento produzindo abruptamente substancial mudança nas circunstâncias daqueles próximos de nós. Dinheiro vai, dinheiro vem; portas se abrem, oportunidades se criam, conquistas vêm, merecimentos são reconhecidos, empreendimentos ousados ou tímidos dão muito certo, ou muito errado, e cabum - aparentemente da noite para o dia os vemos (ou, realmente, a nós mesmos) de repente com finanças e meios significativamente diferentes daqueles de uma tão recente outrora. As reações, apesar de oscilarem, sobretudo em níveis de efusão e demonstração, costumam ser normalmente as mesmas, e lembram-se umas às outras.

    No caso de um pioramento da situação daqueles próximos de nós, tudo corre fantasticamente bem. Desperta-se em nós o tão belo senso de solidariedade e repetidamente brindamos a nós mesmos como somos excelentes pessoas ao estendermos a mão, sem um momento de hesitação ou segundo pensamento, ao nosso irmão em necessidade. Fazemos todo o possível e o impossível e, sorridentes, asseguramos ao camarada em questão que temos certeza que, fosse o contrário, ele faria o mesmo por nós, igualmente apoiador em sua presteza em ajudar e estar incondicionalmente presente e disponível.

    Ah, se não é realmente admirável o instinto do ser humano em ajudar seu semelhante! Nós somos todos, realmente, um espectro de bondade!

    Se acontece, porém, um melhoramento das condições deles - que venha a cabo e manifeste-se nos mais variados meios - tudo muda de figura. Nosso ‘rígido orgulho’, como brilhantemente ironizou a mais velha das irmãs Brontë, não nos permite entreter o conhecimento e manter a convivência nos mesmos termos de outrora, pois - convencemo-nos que estamos pensando assim - não queremos que o amigo vislumbre, por um momento, a noção de que estamos próximos por querendo ‘aproveitar’ sua condição privilegiada, deixando que ele pague a conta do barzinho, nos dê presentes generosos, nos apresente a importantes contatos para que possamos ascender por meio dele, subir como ele, apenas para depois passá-lo para trás, jogado de lado, na comum vala do esquecimento, terminada toda a amizade.

    Pois, nós somos puríssimos! Somos íntegros demais para sequer cogitar agir dessa abominável forma; somos amigos fiéis, pessoas praticamente incorruptíveis, e a mera possibilidade disso passar pela cabeça de nosso amigo - ou parente, par, enfim - nos ofende e incomoda-nos em nosso brio. Uma salva de palmas à nossa pureza de caráter, ao nosso senso ético dos mais inabaláveis!

    Entretanto, meu leitor, na verdade, o que sucede é que esse rígido orgulho é uma ironia bastarda, soberbamente implicitada por Brontë, uma ficção, um conto dos mais lindos que impercebidamente inventamos para persuadirmo-nos a nós mesmos de nossa mais profunda bondade e humildade. Para persuadirmo-nos, ludibriosamente, que é mentira a mais pura verdade de que ressentimos o sucesso dos outros e mil vezes preferimos estar, sempre, em posição superior a eles. Pois, convenhamos, a verdade é essa. A verdade pura, despida de todo falso pudor e desinfetada de toda demagogia, é que nós ressentimos o sucesso do outro (enquanto de forma alguma dispostos a honestamente admitir sua virtude, admirar sua persistência e mérito na conquista, a seguir seus passos para igual êxito) e nos regozijamos estupendamente com sua desgraça.

    Tanto isso é verdade que nós somos excelentes voluntários - a toda boa ação para o necessitado, mesmo que desconhecido, estamos prontos. E os noticiários são verdadeiros campeões de audiência, nossa parte predileta da decadente programação - eles que são a reunião última de todo exemplar da desgraça humana. Nós nos entupimos de noticiários, sempre ávidos por mais, enchendo os olhos e inundando o ambiente com o infortúnio, a dificuldade e a tragédia alheia.

    Tanto isso é verdade, querido leitor, (eu sei que você me compreende) que nas mais sutis manifestações o percebemos descaradamente: não é fato legítimo e verdadeiro, ainda que lamentável, que quando um nosso colega, por exemplo, passa num belo concurso ou consegue aquela promoção pela qual tanto trabalhou, a nossa congratulação é dada da mais forçada forma, com um sorriso amarelo, um frouxo abraço, ou murcho aperto de mão, com uma voz que denota em seu tom o quanto é insincera, fabricada, a nossa alegria pelo êxito dele.

    Nós, meus amigos, ou a maioria de nós (prefiro pensar que algumas almas por aí salvam-se, são genuinamente diferentes e isentas desse defeito) somos seres invejosos, e sofremos de uma síndrome muito da cínica que é o horror pela inferioridade. Gostamos de sermos olhados com respeito, cumprimentados com reverência, impondo uma aura de valor que muitas vezes nem temos. E, por outro lado, detestamos absolutamente a mera ideia de estarmos, em contrário, na ponta mais baixa de qualquer hierarquia - velada ou palpável.

    É por isso que enchem-se, abarrotam-se, as turmas, por exemplo, de medicina e direito, cursos que no senso comum e na prática social que o segue dão acesso a profissões de prestígio; e por isso são renegadas - esquivadas até da possível consideração de nossos alunos do ensino básico - profissões tão importantes, mas reles e degradadas, como aquela do pedreiro, do padeiro, do professor...

    (Não me odeiem médicos e advogados em formação lendo-me. Não estou falando que a profissão de vocês não é nobre, porque é sim. Estou falando que não nobre é a atitude de muitos para com ela, a sua estigmatização como distintivo social, a retirada de sua virtude para encará-la unicamente sob lógica de mercado e poder.)

    É por isso, também e principalmente, que dos nossos amigos, “coitadinhos”, subitamente desafortunados nos aproximamos incondicionalmente, amparando-os, auxiliando-os, protegendo-os até, de todas as formas possíveis, aguerrida e lealmente, com o maior afinco, a maior das doações. E dos nossos amigos, “grande coisa”, que tornam-se importantes ou vitoriosos, triunfam de alguma maneira, nos distanciamos drasticamente. Não podemos mais estar nos intermédios de sua presença porque, em verdade, não suportamos o seu sucesso.

    Que bicho esquisito não é esse ser humano! Com esse tão grande poder de iludir-se, enganar-se perfeito... E tão imperfeito, tão demasiadamente humano, tão invejoso... Pronto a acusar no outro, mesmo que louco por cometer por si mesmo, o crime da prosperidade.

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