quarta-feira, 18 de março de 2015

A primeira impressão não é a que fica

                                                                

  Eu adoro ditos populares. Tenho verdadeira fissura por essas frases marcantes cheias de sabedoria que vira e mexe nos vemos em situações em que podemos encaixadinhamente aplicá-las. “Evita dever que pagar é certo”, por exemplo, é uma paráfrase inteligente da dicotomia mais antiga que existe, do plantar e colher; e “quem vê cara não vê coração” diz inteligentemente como as pessoas podem nos enganar, e nossos sentidos e nossas sensibilidades errarem enquanto avaliando-as.  
                              
    Pois é, mas hoje não estou aqui para discorrer sobre meus favoritos -  o que é muito bom e conveniente, ou o texto não mais acabaria. Estou aqui para falar de um que muito me aborrece, do qual eu aguerridamente discordo. “A primeira impressão é a que fica”. Nunca vi ditado mais equivocado. Antes de comentar por que eu não concordo com ele, vou contar o que me aconteceu para eu começar a questioná-lo. Afinal, que argumento melhor que o exemplo?

    Uma acontecença chave foi ligada a um tal Joaquim Maria Machado de Assis, nosso excelentíssimo ‘Bruxo do Cosme Velho’. Como ocorre com a maioria das pessoas, meu primeiro contato com a sua brilhantez foi na escola, nos saudosos anos de ensino médio (nossa, estou falando como se tivesse sido há anos...). Aconteceu que, como a maioria das leituras obrigatórias, essa foi extremamente desprazerosa, e eu não enxerguei sua brilhantez, não estive imparcial e aberta o suficiente para me permitir enxergá-la. Vi tremendos defeitos no livro, D Casmurro, xinguei Machado e a baba inexplicável de tantas pessoas por suas palavras difíceis e sua narrativa excruciante de lenta e picotada que nada tinha a dizer de especial. Ah, que vergonha de ter pensado assim.

    Aí, nessa vida engraçada de meu Deus e as pulgas que a gente leva, no fim do mesmíssimo ensino médio, aconteci pegar outro livro do mesmíssimo detestado autor. (Abençoadas sejam as provas de vestibular, que muito nos servem ao nos reapresentar a mestres como meu amado Machado). Da generosa lista que devíamos ler, meu apurado senso de dever me fez ler todos, e o primeirão acabou sendo um que eu não esperava ler jamais, que tinha um olho pintado na lombada que - eu juro - piscou para mim me chamando. “Vem cá, docinho, pode me pegar. Quem desdenha quer comprar, eu sei que você está me querendo, eu sei. Anda, me pega. Pode devorar-me” Era Brás Cubas.

    Machado me provou por a com b, Helena, Brás Cubas e Iaiá Garcia que ele é uma luz maior entre as nossas letras, e que não faz mal dar nova chance àqueles que em princípio mais nos decepcionam, ou menos nos impressionam. Ele me mostrou, com seu jeito deliciosamente fluminense, que prosa muito boa também pode ser aquela mais elaborada, para ser curtida aos pouquinhos, devagarinho, entre as palavras - simples ou não - pedindo afinado exame, por ocultando, emaranhados, pensamentos de fina sabedoria.

    Primeira impressão? Eu, detestava Machado de Assis? Que é isso, colega, você está me confundindo com alguém. Ele está no topo entre os meus preferidos!

    Uma segunda determinante acontecença relacionou-se justamente à sua casa. Não sei como vocês se relacionam com seus admirados, mas eu passo a me interessar por tudo a eles ligado, inclusive tempo e espaço. Enquanto o dinheiro não sobra para me levar à Rússia, por Tolstoi, ou à Inglaterra, onde as irmãs Brontë e a singular Austen viveram, o Rio do Bruxo é uma  opção. Fora outro fator: já que Minas não tem mar, a gente vai para o Rio.

    Depois de muito sonhar, entretanto, foi meu trabalho que me levou finalmente. Se tem algum historiador por acaso lendo-me, ele sabe que há certos arquivos que só podem ser consultados lá, certos serviços que só nos podem ser prestados na antiga capital da República e corte do Império, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Fazer o quê, tive que ir.

    Cheguei, toda serelepe - mentira, estava morrendo de medo, assustada com a cidade, eu era metade ansiedade e expectativa, metade absoluto terror - apenas para descobrir que o departamento que me ajudaria estava fechado, de greve...

    Passei pelos estados básicos da grande frustração. Primeiro, a completa incredulidade, a ficha que não cai, a crente descrença. Segundo, o desânimo, o abalo sísmico em seu espírito, o suspiro e a vontade de chorar. Terceiro, a raiva, a tremenda e borbulhante raiva que em revolução vulcânica ameaça para todo o lado e em qualquer pobre porventura próxima alma explodir.

    Vi defeito em tudo, no que via, no que não via. Que lugar horrível de quente! O carioca é maluco, todo mundo de blusa enquanto eu quase evaporando de tanto transpirar (eu esquecendo que sou da serra). E, meu Deus, mas que cidade feia! De onde tiraram que é cidade maravilhosa? É horrorosa, isso sim! O que mesmo eu vim fazer nesse lugar? Onde estava com a cabeça quando vim? Olha onde eu fui me enfiar! Ah, se arrependimento matasse...

    Se arrependimento matasse, toda gente se mataria por ele, apenas para depois se arrepender de ter morrido - ao invés de ter dado uma chance à vida, poder consertar o mal feito realizado, aprender com a (in)utilidade dele, curtir o Rio de Janeiro...

    Depois de mais de uma hora zanzando completamente desorientada, cheguei à conclusão de que a melhor opção que eu tinha, já que tinha batido aquela estrada toda mesmo, estava ali, e o dia estava lindo, era tentar aproveitá-lo, aproveitar o Rio, aproveitar... o mar! Eu visitei o mar, que coisa mais linda ele é, azul! É claro que eu não tinha os trajes específicos comigo, tendo ido inteiramente à trabalho, mas ah, quem se importa em molhar a barra da calça com a cosquinha do mar? Fui a vários lugares históricos do Rio de Janeiro, à famosa Ouvidor, à praia Vermelha na Urca, onde esta beleza de foto acidental aí ao lado me foi tirada... Eu sei que acabei sendo tão feliz nesse dia, fiquei tão encantada... Hoje, se você me perguntar passagem para onde me deixa mais feliz, eu não titubeio na resposta. O Rio me cativou.

    Primeira impressão? Quem foi que estava detestando a cidade horrorosa, morrendo de medo? Eu não, gente, que é isso? O Rio é lindo...

    Por tudo isso, e mais um monte de pouco que não convém agora contar e encumpridar mais esse texto, eu preciso criticar o dito da perdurante validade da primeira impressão. A primeira impressão, eu penso, normalmente não é a que fica, e nem é, naturalmente, a que deve ficar.

    A primeira impressão é uma farsa a que nos atemos quando não queremos ver além, viver além, amar além. A primeira impressão é uma pobreza temporária pela qual passamos no caminho à última, a sábia e mais correta síntese. É uma turbulência necessária, talvez marcante, em qualquer experiência em seu início, quando tentando e querendo reparar e absorver tanta nova coisa, não paramos para de fato reparar em nada, e desse nada absorvemos somente a pobre primeira perninha do ‘n’.

    A primeira impressão é, pois, apenas a primeira de muitas que virão.
                                                                 

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