sábado, 17 de dezembro de 2016

A contemplação do escravo

                                                               
                                                                
    A conjuntura política atual de nosso Brasil, ao contrário do que muitos dizem, não é complexa - no que tange à dificuldade de seu entendimento. É simples. Assim como é simples, bem simples mesmo, a compreensão da opinião pública maioritária em respeito à esta conjuntura.

    Não, as pessoas não estão sofrendo um surto de esquizofrenia coletiva, de visão alucinada da realidade. Na verdade, estão sofrendo de algo parecido, mas que não se deve a um problema psíquico e sim a um desvio de perspectiva, estimulado pela mídia que a alimenta e a quer mansinha, adestrada. Estão sofrendo da síndrome do escravo que se contempla pelos olhos do amo.

    Em outras palavras, sofrem por não reconhecer sua posição oprimida. Afinal, esses escravos (a classe trabalhadora brasileira) são da casa-grande, têm liberdade de trânsito dentro dela, um trabalho leve que começa antes do sol e com ele não termina, têm roupas que cobrem seu corpo e o mínimo conforto negado a outros. Têm muitas vantagens se comparados aos escravos-mais-escravos da lavoura, que têm um trabalho pesadíssimo, coitados, não tem direito de morar bem, comer e viver como eu. Eles, sim, são escravos.

    Sofremos, em suma, da síndrome do escravo que, por sofrer menos que alguns outros de seu mesmo status, não se considera escravo. Apenas um criado sem direito algum, que não é pago e pode ser vendido.

    Esse escravo que não se vê como tal não só apoia como aplaude medidas que o oprimam ainda mais. Admira os modos dos senhores e tenta arremedá-los, pois se imagina praticamente um deles. Não enxerga por que alguns de seus semelhantes (escravos) estão insatisfeitos e ousam reivindicar. Não só discorda da atitude de seus protestos mas tenta sabotá-los, e muitas vezes consegue.
   
    Está no fundo do poço, é chicoteado por sua realidade seguidas vezes, sob o véu do disfarce, e ainda assim sinceramente acredita que as leis dos senhores estão certas, têm razão. Os escravos (entre os quais ele não está, é claro) são sujos, podem muito bem passar sem as regalias que andaram negociando a custo, suportam tranquilamente mais algumas horas de trabalho, já que as catorze diárias são leves, deixam até tempo para vadiar antes de dormir. Suportam também algumas centenas de gramas de comida a menos, porque comem muito.   

    Já é hora de a classe escrava do Brasil de hoje libertar-se dessa dissociação e enxergar-se em seu lugar, em sua condição. Já é hora de deixar de lado essa aspiração sonhadora a ser o que não se é, esta vivência autoenganadora como se fosse o que não é e situar-se no mundo, arrasador e difícil como ele está.

    Situar-se ativamente, tendo clareza quanto ao muito precário e precarizado espaço que ocupa e a necessidade de armar-se até os dentes para lutar por seus interesses, por si e pelos seus.

    Pois, os nossos dominantes - dominantes para dentro, dominados de fora - como já bem disse Eduardo Galeano, já o fazem e muito bem.


Imagem: Execução de castigo de açoite. Negros ao tronco. Jean-Baptiste Debret.

Nenhum comentário:

Postar um comentário