quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O sentido da poesia

                                                             


Poesia não tem que ter sentido
A poesia, no mor e melhor das vezes,
não tem sentido
Não tem coerência
Só tem carência

Poesia não tem enredo
Espaço, tempo, uma voz condutora
Começo, meio e fim
Um conflito e uma solução

Vozes? Poesia tem várias. É uma orquestra.
É polifônica.
Conflitos? Também infinitos.
Sobretudo entre palavras que não se dão,
que saem e sobressaem
que guerreiam na hierarquia do ritmo
na cadência desigual da rima,
guerrilha do som, da pausa.
Palavras que, contudo, a tal carreira belamente beligerante
se doam
se entregam
e assim fazem estrondoso espetáculo.
Absurdamente poético.
Sem aposentar-se.

Soluções? Vixi!
Logicamente, poesia não tem nenhuma.
Não é narrativa
Nem problema matemático

Mas é conforto a alma
é tanto espanto dos males como o canto deles.
A expressão deles
O alívio do recalque
A resistência à repressão
O conforto da luta
A antítese da resignação
Beleza teimosa, necessária.

Começo? Sim, este poesia tem.
Mas não é começo a começar
Ponto de partida oficial
Marco zero.
É começo começado
Começo que, muitas vezes, parece uma morte
A dor do parto, o delírio da febre,
as cinzas do renascer, suspiro último da agonizante fênix

Poesia brota, calmamente embrenhada no território da dor
Na espera vazia da desesperança
na cegueira do pessimismo
Ou na gloriosa terra do amor
na comarca do desejo
na província do carinho
no distrito da amizade
da alegria, do simples júbilo de viver
da quietude, da plenitude, da paz.
No verde da esperança
dos olhos de lágrimas
escorrendo coloridas e risonhas de arco-íris

O município poderoso da arte
É cosmopolita. Universal.
É tabacaria. É o mundo inteiro. É poliglota

É língua que se fala em todo canto,
e em qualquer lugar se entende.
Responde

E por que não se entende mais o sentido da poesia?
Porque ela perdeu a partida decisiva no campo das letras ao time da prosa?
Porque poesia é para ser ouvida, não lida
Falada, cantada, declamada, declarada!
Não lida.

Poesia é para ser ajoelhada
com uma aliança em aguardo e emoções fortes lustrando os olhos
retumbando no peito com o hino arrepiante da expectativa.

Poesia é para ser suada, sofrida, perguntada
no não saber da correspondência,
do sentimento sentido sozinho
pedido desejosamente expedido na impotente e sôfrega metrópole
sem certeza de acolhimento na imprevisível colônia.

Poesia é para ser carnavalesca nos recintos da rua
nos espetáculos das gentes
todas juntas a viver alegremente pertencendo umas às outras
e à causa de vencer essa chata quaresma que quer nos ver vencidos
jejuando da existência.

Poesia é água profunda, funda demais
para um mergulho que não seja
muito sensível
muito treinado
muito acostumado na natural estranheza poética
É mergulho perigoso,
pode sufocar com as bolhas do desconhecido
provocar mal estar com as espécies exóticas
exuberantes
e ainda obscuras
de sensações com as quais povoa o território que invade

Poesia é arte deturpada pela estéril precisão da ciência.
Ah, ciência!
Ela que reina soberana em nossa época
e sufoca com simples despotismo
quaisquer esboços de revolta
e de poesia.

Meio? Fim?
Roma? Amor?
Espelho? Reflexo?
Sentido? Para ser sentido? Entendido?
Subentendido? Desentendido?
Desmascarado?
Sentido somente? Com todos os sentidos? Sem nenhum sentido?

Poesia,
equação cuja ordem dos fatores altera o produto
mistura em que as substâncias reagem
sonho em que o sentido está
imanente
transcendente
dentro de si
e além.



Foto: Trânsito, 1970. Ana Letycia. Serigrafia em cores, 60 x 34, 1 cm.

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