quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Divórcios

                                                                  

    Não. Não estou aqui para discutir o delicado processo de separação entre duas pessoas que se uniram por livre e espontânea vontade, se não por livre e espontâneo sentimento. Não é desta espécie de divórcio que escreverei. Pois, este é divórcio de uma união que foi decisão tomada por dois indivíduos, não nasceu pronta, não é natural e inerente à condição de sua existência.
   
    Quero falar desses divórcios. Os divórcios que contrariam a ordem mais simples das coisas, os divórcios contra os quais a juíza natureza aconselha e que normalmente pune.
   
    Por exemplo, o divórcio entre o corpo e alma. Quem nunca passou pela experiência da queda de braço entre os dois, quem nunca sofreu deste conflito? O conflito no qual, às vezes, a alma quer que seu corpo não queira, mas ele quer. Simplesmente quer, desesperadamente quer. E outras vezes, ela quer que ele queira, mas ele não quer. Ele teima, insiste, não será obrigado.

    Além desse, o divórcio entre tempos. O nosso tempo e o tempo exigido de nós. O relógio que bate como um chicote, nos movendo sempre para frente, insistindo que continuemos, que emendemos suas horas sem percebê-las quando tudo o que queremos é uma pausa, um momento de meditação e solitude e silêncio. Da imobilidade que não raro é necessária para que notemos a nossa vida: a leve ondulação da respiração, o ritmado rugir da pulsação, o fugidio piscar dos olhos.
   
    O divórcio entre o ser humano e seu hábitat, seu lar. Entre o social e o natural. Vez e outra que nos sentimos angustiados sem aparente razão, sinto que esta pode muito bem sê-la. Esse chisma não pode fazer bem.

    Quanto tempo passamos apartados da natureza, enfurnados em salas condicionadas sem perceber o escoar do dia, os azuis do céu, os humores de sua temperatura? Quanto tempo passamos contrariando o contraste claro e escuro que foi pintado pela mestra mão do universo, e ao qual nosso organismo é naturalmente compatível? Quanto tempo atuando em cenários fabricados, cobertos de concreto, que nem sempre favorecem o espetáculo da vida?

    E quanto tempo misturados à harmonia simples da beleza pensada pelo mundo, não por nós? Quanto tempo expostos e dispostos a beber e brindar das paisagens esculpidas com carinho e paciência pelas eras, a socializar com os outros animais que povoam este reino tão próspera da terra? Quanto tempo passamos enxergamos motivo e júbilo na nossa existência pelo simples fato de que ela é uma parte importante desse lindo todo, e de que é um privilégio contemplá-lo, sorvê-lo, tanto quanto participar dele minimamente?
   
    Creio que boa ideia seria embargar todos esses processos de divórcio em nossas vidas. Fazer a união funcionar de novo. Respeitar as vontades, os desejos e limites de nosso corpo ao invés de submetê-lo. Ouvir com atenção o que ele nos diz, em vez de calá-lo. Enfrentar a tirania do relógio que querem nos impor, não acatá-lo. Fugir do domínio do artifício e celebrar no quilombo do natural. Aceitar as belezas que o mundo sorrateiramente nos faz todos dias em vez de recusá-las sem uma hesitação .

    Curar essa síndrome de deus que nos acomete, perceber a nossa pequenez. Deixar de pensar que somos senhores de tudo à nossa volta e tudo dentro de nós, perceber que somos miúdas partículas incrustadas no complexo da natureza, não mestres magnânimos a quem esse complexo existe para servir e satisfazer. Alinhar os desalinhos, aproximar o que se distanciou, harmonizar as partes que fizemos brigadas. Fazer as pazes nos duelos que inventamos e ficar em paz.


                                                             

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