quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Quem sou eu?

                                                                  

  Dia desses, me foi pedido que eu me apresentasse. Dizesse "quem sou", e não estando valendo a tríade simples de meu nome, idade, enquadramento ou desenquadramento profissional. Era preciso que eu esclarecesse quem sou eu, de verdade. Quem sou eu, de verdade?

    Ah, pergunta difícil! Mais difícil pra mim mesma que para aqueles ao meu lado. Mais difícil para os meus próximos que para meus distantes. Mais difícil para os que me conhecem à distância que para os que não me conhecem, nem assim.
   
    As várias camadas de nós confundem-se, fundam-se, abraçam-se, deitam-se... se encontram e se perdem, e não há escavação que as delimite todas na mais perfeita fronteira, que as enxergue e recrie na mais perfeita clareza.

    Quem sou eu? Eu sou boca que come, sou come que baba, sou boca que beija. Sou voz que canta, sou voz que encanta, sou voz que nina, sou voz que emudece. Voz que oscila. Sou olho que olha, olho que fecha, olho que escancara, olho que lacrimeja e que deságua. Sou ouvido que escuta, ouvido que ouve, ouvido que tampa e destampa. Sou riso que ri, sorriso que sorri - por vezes sem ser sorridente. Ah, cordialidade!

    Sou peito que suspira, peito que soluça. Coração que bombeia, coração que sangra, coração que infarta. Coração que desembesteia, coração que para e suspende. Intestino que peristalteia e estômago que refluxa.

    Sou mãos que tocam, que manuseiam, que massageiam, mãos que manufaturam. Mãos que afagam, mãos que arranham, mãos que espalmeiam, batem e machucam. Mãos que sovam massas de palavras e as põem no forno. Mãos que perdem o ponto, deixam cru demais, duro demais, intragável demais. Mãos que passam do ponto, deixam mole demais, macio demais, enjoativo demais. Sou pés que pisam, que revolucionam, que andam em linha, sou pés que sustentam, pés que tanto aguentam, que correm, que cansam. Pés que param, que permanecem.

    Eu sou toda a natureza que há em mim e toda a minha interna sociedade. Sou todo o meu texto e todo o meu contexto, e todo o meu prefácio. Um dia, serei todo o meu epílogo.

    Eu sou a Vitória, a derrota, o empate. Mais vitórias que derrotas, prefiro pensar, e mais derrotas que empates. Empates não se mexem. Empates só empatam. Empates não fazem mexer. É melhor que a inércia, decerto, o abismo da queda, e sua talvez escalada de retorno. E esse talvez é um provocador irresistível!

    Eu sou o conjunto de minhas escolhas, de minhas renúncias; de meus sucessos, de meus fracassos; de meus excessos, de minhas faltas; de minhas presenças, de minhas ausências; de meus eufemismos e de minhas hipérboles. Sou uma história muito apaixonada e convicta, uma geografia confusa ainda a mapear, uma filosofia logicamente inexplicável, uma arte muito mais que abstrata, em moldes paradoxalmente clássicos. Sou uma grande prosopopeia.

    Eu sou filha, irmã, neta. Sou colega, e raramente amiga. Queria ser mais amiga que colega, e não em estatística. Eu sou amiga, sim, no entanto, e como tal semideusa. Porque toda amizade tem seu quê de divino, e seu acento de humano.

    Eu sou amante, ouso dizer, do indeciso Destino que, normalmente, faz muito do que eu lhe direciono, falando ou silente. Tendemos a gostar daqueles que fazem o que nós queremos que eles façam, e a desgostar daqueles que não o fazem. Grande burrice, da qual não escapo. Pois, os passos e caminhos que meu amante toma são muitas vezes sussurrados a ele por mim. Sou eu quem dito a mor parte de seu rumo. Uma outra parte, porém, ele faz obedecendo seu capricho. E esse capricho, então, me leva a lugares e me presenteia com sensações e experiências que eu jamais podia esperar. Às vezes na vitória, às vezes na derrota, as vezes infelizmente no empate. Sempre no jogo da vida, que dá ao seu jogador um oscilante quinhão das três recompensas.

    Amante do destino, sou, e casada a mim mesma, em aliança eterna. Pode ser que eu contraia outra, e outra, e tantas mais, porque a monogamia me exigiria um único cônjuge, mas eu não posso abrir mão de mim mesma. É um abandono inconcebível, uma traição que não estou disposta e não me acho capaz de fazer. Esta é mesmo, como dizem, uma união indissolúvel. Nem a morte separa.

    Sou filha, irmã, neta, colega, amiga, amante e casada. Eterna estudante. Aluna, não. Não sou ainda mãe. Tenho os elementos de mãe dispersos em mim, acho, e de quando em vez por circunstâncias ativados. Mas não tenho o essencial de mãe pois não gerei. Escrevi minhas palavras, borroquei meus textos, sonhei meus sonhos e fiz minhas lambanças, mas por mais vivos que tenham sido todos eles, em certa medida gerados por mim, ninados por mim, alimentados por mim... por mais que todos eles venham, na justeza da autoria, a carregar meu sobrenome, e na polifonia do silêncio e da conversa contar histórias minhas e a minha história... por mais que vários por mais... não são ainda humanos completos, com boca, voz, olhos, ouvidos, peito, coração, riso, sorriso, peito, coração, intestino, estômago, mãos e pés. São fruto de mim, mas não são meus filhos. Sou assim mãe em potencial.
        
    Posso dizer que sou, creio, um corpo, um espírito, uma alma, uma mente, uma consciência. Um quebra-cabeças ainda em processo de montagem.

    Quem sou eu? Ah, esqueci de responder. Rodeei e rodeei e não respondi. Desculpem, sempre preferi a figura do círculo ao quadrado. Eu sou, talvez, este texto. E escrevo sobre mim por isto ser tanto minha grande falta de assunto quanto meu assunto favorito.

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