quarta-feira, 30 de março de 2016

Por que a literatura é uma excelente professora de história

                                                                 

    “No ano de 1930, o Brasil enfrentava um quadro político turbulento...”
   
    Só por começar com “no ano de...”, o livro já perde o aluno. Afinal, no ano de 1930, sua avó nem era nascida! Está muto longe... “E se eu mal consigo entender - ou realmente quero saber sobre - o quadro político dos dias de hoje, o que faz pensar que isso pode ser diferente com aquele de quase cem anos atrás?”
   
    Nada. Sinceramente, nada. A história colocada deste modo não é muito atraente. Essa mania de passar a história como uma série de fotografias panorâmicas (de péssima resolução) postas lado a lado, seguindo a ordem de data às quais dizem respeito a torna algo frio, lonjo, empobrecido, pouco tangível, acessível, interessante ou minimamente envolvente.

    A tendência cientificizante, demasiado objetiva, que nomeia estruturas, delimita classes, elenca fatos, suas causas e imediatas consequências é a responsável por esse acinzentamento da história. Ela nos mostra o passado de forma muito diferente daquela em que experimentamos o presente. Ela nos faz perder a dimensão mais importante da história: a humana.
   
    Ela não nos deixa saber como seria adentrar um bar de outra época, se ele seria escuro ou bem iluminado, se seria limpo e por quais pessoas normalmente frequentado. Não nos diz o teor das conversas que aconteceriam ali, o que se passava pela cabeça das pessoas, no geral. Não nos informa sobre como seria o ambiente de trabalho de alguém, como ele se sentiria em sua jornada, na realização de seu trabalho. Não nos deixa entender como seria uma família de outra época, de quais membros ela seria composta, como seriam as relações e a diária convivência dentro dela. O modo como a história é “contada”, em resumo, não nos diz quase nada sobre como nasciam, viviam e morriam as pessoas em qualquer tempo diferente do nosso.
   
    Quem pode ajudar a aquecer a narrativa é a literatura. Ela pode ser um meio bastante agradável de estudar a história porque a conta de forma vívida, humanizada. Ela mostra que, como nos nossos tempos, as decisões políticas, os sistemas econômicos, as crises e as fases de bonanças do passado eram feitas e vividas... por gente.
   
    Gente que ri, gente que chora, gente que chora de rir, gente que ri para não chorar. Gente que ama, gente que odeia, gente que é indiferente, gente que não sabe o que sente. Gente que tem medos, gente que tem sonhos, gente que tem dúvidas, gente que pensa ter respostas. Gente que erra, gente que acerta, gente que pede perdão, gente que não sabe aceitá-lo. Gente teimosa, gente volúvel, gente que desiste, gente que insiste.
   
    Gente que se apaixona perdidamente, gente que se decepciona amargamente, gente que quebra a cara. Gente que tem muita sorte, gente que é azarada, gente que joga no amor e loucamente ama o jogo. Gente que não se permite o amor, gente que não sabe amar. Gente que se entrega sem pensar, gente que pensa demais e nunca se entrega. Gente que se escancara, gente que não se mostra, gente que não se decide. Gente comedida e prudente, gente que é turbilhão.

    Gente que tem pais, gente que tem filhos, que comemora conquistas e lamenta perdas. Gente perdida, gente encontrada, gente que se acha. Gente que não sabe o que fazer da vida, que não sabe lidar com a morte. Gente que tem dinheiro, gente que não tem, gente que parece que nasceu para viver sem, gente que prefere não ter. Gente que se posiciona, gente que não toma partido, gente que tem medo de se pronunciar, gente que não se importa.

    Gente que quer abraço, gente que quer colo, gente que não sabe externar seus afetos. Gente que se expressa bem, gente que se expressa mal, gente que não sabe se expressar, gente que não tem o que expressar. Gente falsa, gente verdadeira, gente transparente, gente fosca. Gente que existe, que vive intensamente, que um dia morre. Gente sendo gente, como a gente.
   
    Não é tão mais gostoso experimentar a história assim, com o tempero da humanidade, da viveza, da emoção? Como uma banheira de estórias em que queremos mergulhar, conhecer cada gotinha que faz aquelas águas? Nisso, a literatura pode ajudar.

    Aliás, mais certo é dizer que literatura e história se ajudam, mutuamente. Quem sabe da história daquela época, pode entender muito melhor o que se passa num livro. Quem já leu certo livro, entende melhor a história, estalando os dedos e sentindo o clique da compreensão de forma mais rápida e completa.

    Afinal, um desavisado que leia os livros de Jane Austen pode não entender o porquê do menosprezo discreto com o qual ela e seus personagens tratam os comerciantes de escravos para as Antilhas que atravessam de relance suas estórias. E quem já sabe sobre a época, pode enxergar com os livros algumas de suas nuances: por exemplo, a sociedade burguesa incipiente que gestava-se - no maior dos paradoxos - com mentalidade ainda aristocrática, e que assim via com maus olhos quem enriquecesse com qualquer “trabalho” que não fosse a supervisora administração daqueles que cultivavam sua terra e, sobretudo, quem falasse muito orgulhosamente sobre seu enriquecimento.
   
    E como entender mais vivamente os efeitos da Revolução Industrial que com o pontiagudo, cruento e dolorosamente realista Germinal, de Émile Zola? Ou o impacto da ocupação colonial sobre as sociedades tradicionais africanas que com o poderoso e chocante O mundo se despedaça, de Chinua Achebe?

    Em suma, não estou dizendo que a literatura é o único ou o melhor modo de estudar história que pode haver. Até porque - sei que sou suspeita para dizer - de minha parte, penso que a história é bela e cativante por si mesma. Contudo, como já disse aqui em outras oportunidades, a gente se deixa mover muito mais por aquilo que nos comove. A gente se deixa envolver muito mais por aquilo que nos envolve, que nos enlaça a atenção e acorda emoções. E é por esse seu poder de humanizar o que conta, de tocar e emocionar quem se permite adentrar seu espaço, que a literatura pode ser uma excelente professora de história.

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