quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O amor não é cego

                                                               
                                                             
  Dizem por aí que o amor é cego, e é curiosamente lindo por isso mesmo. Como um vírus, poderosíssimo e arrebatador que, quando tem sua carga viral muito alta no corpo do doente, tem o poder de anuviar e confundir sua visão quanto a tudo relacionado ao seu amado. É nesse sentido, creio, que dizem que o amor é cego. Ele cega.

    Francamente, eu preciso discordar disso. Nunca ouvi abobrinha tão enganada, embora seja bem possível que também não tenha ouvido uma tão bonitinha.

    O amor não é cego. Não tem nada de cego, nem poder de cegar. Na verdade, o amor enxerga tudo, e muito bem.

    Isso a que nós nos referimos quanto dizemos “o amor é cego” é, na realidade, paixão. É ela a potência cegadora, a força que nos faz enxergar uma certa pessoa sob uma única lente, que é a da perfeição. É ela que nos faz achar − ou, aliás, firmemente acreditar − que a criatura despertadora dos nossos suspiros nem é criatura, de tão perfeita; é de fato um anjo que caiu extraviado na terra, e foi colocado em nossa vida para enchê-la de luz. O anjo pelo qual estamos apaixonados é (ou torna-se, porque assim nós o fazemos) lindo, inteligente, doce, a mais luminosa presença que já pôs os pés na terra, a reunião de todas as qualidades num único ser. Ele simplesmente não tem defeitos, e ai de quem ousar insinuar algo nesse respeito!

    É... A paixão é mesmo cega. Mas até que essa é uma cegueira bastante gostosa de experimentar, uma cegueira boa. Acredito que, inclusive, chegamos a ficar levemente tristes quando ela passa...

    Quando ela passa, costuma dar lugar a algo mais robusto, mais completo, e também infinitamente mais complicado, que é o amor. A paixão, meus amigos, pode não ser nada além disso, ela mesma, uma emoção excitante, linda e passageira, ou pode ser a primeira fase dessa jornada longa, difícil e cheia de desafios no jogo da vida que é o amor. Esse que, em verdade, não tem nada de cego.

    Quando digo que o amor não é cego, digo sem titubeios e sem medo de errar. O amor não é cego, nem parcialmente, nem completamente, nem minimamente. O amor tem olhos em perfeito funcionamento − olhos bons, olhos sábios, olhos pacientes, olhos cheios de sorriso e cheios de perdão. Olhos que aceitam, que entendem, que às vezes se reviram em divertimento, às vezes querem saltar das órbitas em indignação e raiva, ou fecharem-se desanimadamente em tristeza.

    O amor enxerga, sim senhor! Enxerga tudo, em visão clara e límpida. E ele não é amor porque ama apesar de, dos defeitos, das feiuras que vê, das contradições que é forçado a mirar, dos desapontamentos com que topa e que, sabe, não vai esquecer tão cedo.

    O amor é amor porque ama com tudo isso, incluindo tudo isso, porque aceita o amado por inteiro, no todo, o conjunto de partes, sem deixar nenhuma de fora, nem mesmo aquelas de que menos gosta e que, no fundo, preferiria que não existissem.

    As íris do amor são coloridas num raro tom de sabedoria que é o que permite sua existência e o que faz sua beleza. Pois, o amor olha apenas de soslaio, de relance, ou fazendo descarada vista grossa ao que sabe que o magoará porque sabe que só assim ele pode existir e perdurar. Todo ser humano é falho, estupendamente falho, e o amor sabe que o quanto antes aceitar isso − em si mesmo e no outro − e souber lidar com isso, melhor.

    O amor é belo justamente porque nem sempre perfeito, porque se reconstrói, porque renasce e continua, porque admite erros e permite metamorfoses. Porque se permite metamorfoses. O amor nunca perde de vista o fato de que é inconstante, mutável, dinâmico, em constante movimento e transformação, e que não pode ser de nenhuma outra maneira. A gente muda. O outro muda. A nossa relação com o outro muda. Assim, é impossível que os sentimentos e as percepções envolvidas nela não mudem, também.
   
    As estações da vida não se repetem, como num ciclo. Elas só progridem. Não é possível voltar à infância, à juventude, avançar à adulteza ou à maturidade ao só esperar o passar dos meses. Tampouco, passada esta fase, é possível voltar com a mesma pessoa que se conhece há dez anos à paixão dos primeiros dias. Não é possível, e o amor sabe disso.

    Ele continua, no trilho da vida que só anda para frente, e para tal, precisa se adaptar. Essa adaptação (ele sabe, embora nós nem sempre saibamos) não precisa significar negativamente um empalidecimento, um desgaste, uma "perda de toda graça", como o gosto do chiclete já muito mascado. Pode ser somente uma reinvenção, uma nova fase, um período diferente − com suas belezas e suas feiuras, como todos os anteriores períodos também tiveram.

    O amor, meus amigos, não é cego. O amor vê muito bem, sem precisar de óculos, ou lentes, ou cirurgias, ou correções. Ele vê todo o espinho e toda a flor da paisagem, assim como toda sua cor e todo seu cinza. Ele vê as partes do terreno inférteis e aqueloutras mais férteis, vê todos os meses de seca e todos os meses de chuva. Vê todas as nuvens nervosas e emburradas no céu e todos os sóis, risonhos e claros. Vê o cobertor celeste do teto do mundo nublado, e fechado e soltando raios, e sabe que ele passará. Assim como o vê sereno e límpido, claro e azulzinho, e sabe que também passará. Que nada permanece o mesmo para sempre.

    O amor vê tudo, todos os vagões de seu trem comprido, que pode caminhar por muito se for bem conduzido. Se aqueles que estiverem a bordo souberem olhar, apenas, com os olhos do coração, que não é cego, nem surdo. É vibrante, é vivo, é forte, é lindo. E tem um jeito todo especial, fascinante e necessário de olhar...

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