quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Lugarejo

 

   Amanheço. Sorrio, O cheiro da manhã adentra-me ainda junto ao travesseiro. Mantenho cerradas as pálpebras, aspirando e sorrindo caladas. O sol jorra pela janela, anunciando inconfundível que outro dia está nascendo... Nasceu! Que belo parto!

    Abro os olhos. Enfim permito-me enxergar a luz que mesmo sem ver enxergo, percebo, reconheço. Examino o céu, bebêzinho, de azul tímido e ingênuo, sol sorridente e arteiro. Dois colegas no berçário, chorando forte consigo, a pulmões coloridos, a alegria do nascer. Ímpar nascimento, singelo presente aos sentidos - que se renova e se repete, fênix infinita... Viver é bom. Viver é sentir. Um sentido.
   
    Estimo as horas pela luz e o som do dia. O sol caminha no céu assim vagaroso, como quem espreguiça. Pássaros já cantarejam, exercitando sua voz inocente, produzindo concerto luminoso. Estão perto, estão longe, em pequenas maltas, em tribos, solitários... O ouvido do dia cumprimenta a todos.
   
    Levanto, devagarmente, sem pensar. Meus movimentos parecem encorajados ao delicado, de modo a não magoar o espetáculo. O dia fresco e desperto no berço... Sorrio. Bocejo e me estico sem fazer um som.
   
    À cozinha, silenciosos passos me guiam, e ainda o sorriso. A vida está certa, a vida é simples, não há pressa. Encho de água um velho caneco, que vai ao fogo sempre, sem se queimar. Fenômeno. O líquido límpido amortece a si mesmo no recipiente à medida que faz poça, produz distinto barulho, mais suave, graguleja. Pronto. É hora de recuar outra vez, deixar que o fogo evapore-se à água, acarinhando a barba do caneco velho que transmite a quente carícia em colo calmeiro.

    O dia amadura-se aos poucos, engatinha, levanta. Ergue os bracinhos, ousa um balbucio, baba uma pergunta. Criança pequena.
   
    O cheiro de café destilando-se aromado fecha o ciclo da primeira infância. Delícia. Transição quieta de que se nota o tom ouvido, o tom visto, o sorriso. O azul mais ainda azula-se, cambiando cores, cantando amores, levado. Os dentinhos do dia arreganham-se salientes já. Suas perguntas dão pulos, mais claras. Dificultam, dificulteiam. Tento acalmá-las todas sem resposta, só com um afago. O cafuné sem querer espera fazer durar o momento. Infância.

    Prontifico-me à vida. Duas pernas compridas salteiam e me guiam à toda, tranquilas. De cá para lá, de volta a dentro, de lá para cá, de novo à porta. Sorrio. É impossível não sorrir ao ver mais pleno a criança que peralta esperneia. O dia é bonito, linda é sua tenra idade.

    A idade avança sem envelhecer, ainda. Caem os primeiros dentes, para o encanto da fada, e a reposição com aqueles mais fortes. O processo demora - sua ciência é sábia. A criança descobre a convivência, a necessidade que tem dela. Engraçado mistério saltitante - que ela ainda não sabe para sempre insolúvel.

    - Bom dia!

    Saúdo a senhora em sua casinha avantajando-se à rua. Ela já sabe, ela também entende. Namora a vida dali de sua varanda, já tendo entregado-se a ela sem esperas, sem perguntas e sem respostas. Sabedoura de como é vã a tentativa delas. É belo esse amor que ela tem à vida, o amor que não pergunta, o amor que não se explica, o amor que é, somente. O amor que entende, sem compreender. Sem precisar de explicações.

    A criança floresce, olhada pela experiente senhora, que namoreia a inocência da outra recostada no peito de sua varanda. Belezas. O sol no céu prossegue, à toda, em seu arco - posto na cabeça da criança a ninar seu cabelo para trás. Azul arquinho, de flores raiantes, altas pétalas. Luz amarela.

    A sombra chega das folhas da copa. A altura das árvores intriga a criança que lhe aprecia e é grata. Companhia. Sensação de que se é observado. Silêncio. Pára o inteiro trânsito da rua larga em pedrejoulas uma presença risonha - quatro patas. O cão encara, lambe o dia como quem ri. Vai à árvore, cuja altura não lhe é objeto de criança análise, mas de idoso amor. Ergue a perninha, arregala-se, umedece o tronco. As riscadas manchas da arte sem mira permanecem na árvore, que as recebe bem-vindas.

    O cão ressabia-se, aquieta. Sussurra um olhar fugido de quem sabe que aprontou. Olha para mim. A travessura é natural, melhor que exista sem pito ou castigo. Sorrio. O cão continua a rua de cabeça erguida, rabo ao ar, patinhas animadas que se sucedem num trotezinho maroto. Lúcido, lúdico, lúmneo. Sorrio, outra vez.
   
    De repente, abaixo-me, em susto. Passa perto um pássaro grande, ave aberta, alertando-me de que o dia galopa, sem pasmaceira, sem a pasmaceira do cão. É preciso sacudir-me da vagareja, acompanhar a juventude que chega. Chega em susto, ave aberta. Chega arrebatando. É bom fenômeno. Mas é com saudade que despeço-me da gostosa infância que tem cheiro de manhã.

    A juventude é longa, difícil, impressiona mais longa e mais difícil do que talvez da vero seja. Mesmo junto à adulteza, ela não dura toda uma infância. A vida escorre. Há períodos tumultuosos, revoltos, espinhos e cravos. Há períodos rasgados, fatias de relógio, águas do rio. Voam em correntes alternas. Eu não entendo porque eles não acalmam, porque eu não me acalmo. Eu me confundo, eu me retorço, eu faço cenas. Eu não me entendo. Eu não entendo nada, e não me conformo. Não gosto de não entender. Não me movo mais em delicado, me movo agitado, brusco, ferindo o dia e a mim mesmo.

    As perguntas são demais agora, sol incandescente lá no alto. O humor varia, com o ápice do calor no dia. Pico montanhoso que eu escalo em nervoso. As perguntas são demais agora, e ninguém responde! Pássaros não cantam tanto, não voam perto, o céu tenebra-me. Sua luz cega, já não posso olhá-la aberto.

    Eu custo e longo a descobrir que ninguém responde porque não há respostas. Há palpites. E, mesmo eles, tão falhos, tão tolos, tão pequenos. Humanidade. Entendo tudo quando é minha vez de estar no lado respondante da pergunta, da idade, recebendo arroubos de inquietação dos meus mais tenros, que perguntam com caras e olhos e palavras revoltas.

    Não digo a eles calmarias, não peço que se acalmem. Sei que o sol está ardendo, deixando rastro, rumorejante, bruxuleado, incenso. Sei que o vento parece não ventar, o sopro é parado, agoniante. Como eu quis, na minha vez, que o tumulto passasse, o café da manhã voltasse, ou aquele da adiante tarde logo chegasse.

    Ah, e quando chega, agora... Já é menos esmeradamente aromado que o de temprana outrora. Eu lamento, suspiro. Não devia ter desejado que o tumulto ardente da primeira tarde passasse tão rápido.

    Observo. Continuo a observar. O céu aninha-se aconhegado, em cor amena, serenidade. O sol desce, deslizando pelo escorregador que é a outra ponta do arquinho. Ele diverte-se. E eu, com sua descida. Observo os meus mais tenros, sorrio. Revivo por eles o meu tempo passado, a minha tenridade. E com uma pitada de ciúme, a saudade bate: não posso reviver tudo, reviver pleno.
   
    As costas doem. Ah, minha Nossa Senhora, meu bom Deus, levantar é custoso, já não sem ruídos. Não é velhice, mas já não é infância. Nem juventude. É madureza. As coisas se esclarecem, pareço mais seguro agora. Eu me conheço, eu me atrevo a viver com mais calma. A tormenta passou. O encanto da novidade de tudo, antes dela, também. Madureza. Eu já vi as estações repetirem-se.

    As juntas não são mais molinhas e espuletas como as da criança. São lentas. Os dentes são já os permanentes. E gastos. Ou desgastando-se. O sol sorri, descendo calmo e bonito no céu anil da tarde adulta. Está vistoso. Homem feito. Ele cobriu quase toda a cabeça da criança, enfeitando à toa. A vida prossegue, tão simples. Tão certa. Cada sol em seu céu, cada coração batendo em seu lugar.

    Tão logo chega vistosa e plena, a madureza decai sem esperar. A idade precipita-se. Gradual mas vertiginosa. As mudanças são nítidas, eu começo a esquecer... As coisas. A verdura da mente também já passou de seu fresco esplendor, seu aberto vazio a preencher-se. Caneco velho de ferver água.

    Não vejo os minutos passarem, as horas... Passaram. Meses e anos. Os joelhos fraquejam, vacilam, a postura cansa-se. Passei da plena elegância da adulteza. Passei de me sentir criança. Não entendo mais do que entendia então, mas não me revolto. Entendo que não entender é necessário, é entendível. Não me revolto, me acalmo. Pitando a vida, eu me acostumo a ela.
   
    Não sou mais tão forte. Não pulo mais a janela, não sou mais tão ágil. Mas o sol ainda pula. Ha! O sol ainda é ágil, escala e pula sem problemas, ligeiro e risonho - por outra janela, é claro. Ninguém nasce exatamente onde vai morrer. Ninguém morre exatamente onde nasceu. Jornada. Viagem luminosa e curva, arquinho - florido e espinhado. Sol, menino sapeca!

    Meus olhos amiudam-se agora a ele, a vê-lo cansar-se de seu dia de brincadeira lá fora. Meus olhos... Já não são tão abertos quanto eram ao amanhecer. Já não enxergam tão bem, perdem coisas, que não vão achar, deixam passar... Os cílios amorenam-se claros, ralinhos, juntam-se ao par natural à força das cócegas da luz. Luz laranja. Luz morrendo em azulado bocejo, bocejo do céu. Cansaço.
   
    A noite chega, amainando a luz. O dia aposenta-se. O sol despede-se do céu em longos pedaços de bocejo, raios dormentes, olhos agachados. Cai lento, lento, canção de ninar. Melodia em sol menor. Sonora. Bela. Bela... A vigília da noite começa, não menos bela. Solene turno.

    A saudade não remedia-se, porém. O arco está completo na cabeça da criança que dorme. Acordará outra vez, despertará amanhã, cedo de novo, com os passarinhos. O dia é bom pra brincar.

    O cheiro da noite entorpece-me agradável. Ponho os pés para cima, fecho os olhos, mesmo assim também sabendo do cobertor escuro estendido sobre o céu da noite. Manto estrelado. Fresco. Sorrio. Está ventando.
   
    Decido deitar, anoiteço. A noite cai como meus olhos a fecharem-se. Abrirão-se amanhã, cedo com o sol. Sentirão a luz, o aroma, a textura, o mesmo harmônico todo outra vez. Sinfonia. Sinfonia de luzes. Fotografias musicais. A vida é generosa. A beleza de um dia se esvai, para sempre, permanecendo. A beleza é breve. Mas está sempre de volta. Basta esperar. Tudo flui, e tudo permanece. Lugarejo.
   

2 comentários: