sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Sobre os guias de redação, as leituras empobrecidas e a liberdade na sala de aula

Meu primeiro escrito é também sobre a minha primeira paixão: a educação. Aí vai:


    Há alguns meses, Lya Luft escreveu um artigo absolutamente inspirador, “Aulas de mediocridade”, atacando uma iniciativa - que já está acontecendo, parcialmente financiada pelo Ministério da Cultura - que é um verdadeiro atentado à literatura brasileira e à educação: a simplificação de clássicos brasileiros, como Machado de Assis, para a leitura de pupilos da nossa esplendorosa educação básica. Eu peço licença para aplaudir o escrito de Lya e comentar mais um pouquinho de outros absurdos que esse absurdo aponta.
    Além de ser um incentivo à mediocridade do aluno, uma aval contundente para que ele contenha-se na pequenez, contente-se e acomode-se com o adaptado que lhe é mastigado, ridiculamente descomplicado, a facilitação de obras-primas da nossa literatura fere também outro algo que é essencial ao crescimento do aluno, que é um direito fundamental, um dote natural que deveria ser exercitado com entusiasmo, encorajado por aqueles responsáveis por sua educação: a liberdade de pensamento, o exercício do intelecto sem amarras, instigado em sua criatividade, sua unicidade.
    A adaptação facilitada, talvez até sem querer, traz a sua diretriz, a interpretação do adaptador, presente no modo de refrasear uma sentença, de direcionar a obra para um lado ou outro, focando em certa parte ou certo aspecto dela, em detrimento de outros. Aquilo que é lido deixa de ser puro e assim fere a liberdade do leitor de interpretar o escrito original, de formar sua própria opinião acerca dele, absorver dele a essência de acordo com o que ele entender, de seu jeito, seu jeito único e imaculado de pré-julgamentos, de palpites implícitos ou sugestões escancaradas, de interpretações ditadas.
    Essa falta de liberdade, o encarceramento e acondicionamento, adestramento das nossas capacidades pensamenteiras, e do que concluímos e pensamos através delas, é um mal muitíssimo presente na nossa educação, e não só nas aulas de literatura. Por que é que professores de redação ensinam não só a técnica mas o método, o ‘esqueleto fundamental’ do texto, que o aluno deve repetir toda vez que escrever, ou antes de começar a escrever? Por que é que são distribuídas ‘colinhas’ para fazer o esquema do texto? Introdução: problematize, desenvolvimento: desenvolva e sustente, conclusão: solucione, reafirme seu ponto de vista, amarre o texto com seu final... Ou então uns guias em tópicos, como receitinhas de bolo, mais ou menos assim:
    *Qual é o tema?
    *Qual é sua tese?
    *Quais são seus argumentos para defender a tese? (Pergunte-se qual é o problema, como resolvê-lo, selecione seus argumentos e explique-os objetivamente)
    *Qual é sua proposta de intervenção?
    Virgem Nossa Senhora! O que é que estamos fazendo com os nossos pequenos? Ao invés de deixá-los criar, escrever intuitivamente, com liberdade, atrevimento, autonomia, ou de colaborativamente elaborar com eles um bom projeto para guiá-los em frente à página em branco, nós lhes damos a coisa pronta, determinando-lhes não só o que deve ser feito mas como. Nós podamos a liberdade deles de escrever como acham melhor, como se sentem mais à vontade, e os orientamos a sempre repetir a receita básica, batida, - que para alguns, chega a ser chata e mixuruca. Nós esquecemos que existem várias formas diferentes de se chegar na mesma coisa, no mesmo lugar, que não existe fórmula mágica para escrever e muitas vezes as melhores produções são aquelas que partem do inesperado, que se arranjam inusitadamente, que contrariam a formalidade das regras e nos surpreendem na sua forma escolhida de apresentar o conteúdo. A linearidade, a objetividade que tanto se prega é um cárcere, que mina a liberdade do aluno enquanto autor, produtor ativo de seu conhecimento e seu escrito. É uma caixinha fechada que se entrega a ele, enquanto podia-se pedi-lo que pensasse ‘sem teto’, que se abrisse para fora da caixinha.
    Com as avaliações de modo geral, da mesma forma. A ladainha é a mesma, assim como a tragédia, o atrelamento por limite, por uma viseira que colocamos, como nos cavalos. As provas não fazem mais do que pedir ao aluno para repetir o que foi dito em sala de aula, que ele deve memorizar e reproduzir. Devemos parar de tentar fazer os jovens máquinas acumuladoras de informação e começar a ensiná-los a serem críticos, mentes independentes e maduras, capazes de receber um dado, interpretá-lo, sintetizar a partir dele uma crença ou opinião ou conhecimento, coisa que ele é perfeitamente apto a ‘gerar’ por si próprio. Devemos deixá-lo parturiar suas próprias conclusões, não dar as respostas antes das perguntas. Devemos deixá-lo observar plantas, por exemplo, e fazer suas próprias deduções, antes de explicar mastigadamente, cruamente, o que ele irá achar caso se interesse e queira ver com seus olhos. Devemos dar o livro - puro, original - e pedir suas impressões acerca dele, as características que ele apresenta, antes de explicitar miudinho as propriedades daquele certo movimento literário, e o que as produções que o representam vão apresentar. Devemos deixar o jovem livre para construir seu conhecimento, guiando-lhes apenas, supervisionando-lhes, e não vomitando-lhes o que eles devem saber, como devem pensar acerca daquilo, o modo com que devem executar certa tarefa.
    Na produção de texto, na leitura e literatura, na biologia ou na matemática, nossos pupilos carecem de liberdade, de oportunidades de observar e deduzir, criar independentemente. Inventar novas formas de fazer, escrever comentários críticos, sugerir atividades diferentes, que saiam da rotina do livro-texto, da avaliação escrita, da paráfrase de um conhecimento ditado e decorado, e muitas vezes de maneira nenhuma absorvido efetivamente. É um grave crime que cometemos, todos os dias, deliberadamente interná-los na morosidade da repetição, na mecanicidade da assimilação forçada, da aceitação de informações que eles não entendem, que não interpretam por si mesmos, que não se tornam interessantes ou instigantes uma vez que tão automáticas e obrigatórias. Eu urjo aqui senão uma mudança, porque talvez não sei como exatamente propor que aconteça a revolução necessária, um pensamento, uma reflexão, sobre o que queremos de nossos filhos, de nossas crianças, do futuro do país, e do modo como estamos extraindo deles toda a vivacidade de seu conhecimento, a potencialidade de seu gênio, sua criatividade, sua autonomia e liberdade.

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