Quando eu era pequena, o mundo parecia grande e eu tinha medo dele. Tinha medo do escuro e não gostava quando me diziam que não existe essa bobeira de fantasmas. Não gostava de ficar sozinha e ficava feliz com qualquer companhia.
Quando eu era pequena, me alegrava quando passava no céu do
dia um avião de barriga branca e braços vermelhos plainando calma e
barulhosamente. Gritava para ele os presentes que queria para o natal,
com toda a força de meus pulmões de moleca e toda a cacofonia de meus
primos em volta fazendo o mesmo. Achavamos que aquele era o avião do
papai noel, porque... O trenó é mesmo um transporte muito antigo e agora
o papai noel deve ser mesmo mais moderninho.
Quando eu era pequena, tinha pesadelos engraçados que me
atormentavam ainda quando eu acordava em que eu chutava uma bola,
sozinha num campo, e em vez de seguir em frente ela vinha para trás, me
fazendo um trágico gol contra de cobertura. E quando me sentia triste,
olhava para o céu da noite, como o rei Leão, em busca da estrela mais
brilhante, que eu acreditava ser meu avô. Ele era
mesmo como uma estrela, assim calado, quieto e com uns olhos que viam
tudo. Eu acho que ele me ouvia.
Quando era pequena, não entendia porque as pessoas viviam
em casas nos morros, se elas sabem que dali elas podem cair quando
chove. Por que não vão para outros lugares? Tem lugares mais retos sem
casas na cidade!
Também não entendia porque quando dois meninos da rua
brigavam, a brincadeira acabava, ia todo mundo murcho pra casa, e só
quando as mães vinham com eles pela orelha, eles se pediam desculpas.
Pedir desculpas não pode ser tão difícil assim, tão difícil ao ponto escabroso de fazer a
gente perder o dia de brincadeira.
Quando era pequena, queria mesmo crescer. Porque a água do
chuveiro deve ser mais quentinha lá em cima do que aqui embaixo. Porque é
tão mais elegante ser grande e ter pernas que alcançam o chão quando se
está sentado, em vez de ficarem balançando bobamente, incapazes de
alcançarem o chão a não ser que me eu me deite na cadeira. Porque quando
se é grande, o céu está mais perto, e vai ficar mais fácil de o vô me
ouvir e o papai noel também. Vou até poder alcançar as nuvens, se der um
pulo bem forte e me esticar bastante. Porque vou poder usar a faca para
cortar o queijo e passar a água fervendo no pó para virar café.
Agora que sou grande, não estou tão crescida assim. Ainda
não me dou muito bem com o escuro e acredito piamente em
fantasmas. Ainda não faço gosto em passar muito tempo sozinha e tenho o
hábito de, quando isso acontece e não pode ser evitado, sair só pra ver
gentes.
Agora que sou grande, não grito para o papai noel os
presentes que quero para o natal, porque... Bom, o céu continua longe, e
ele não vai me ouvir. Só a voz da criança tem o timbre exato do som que os ouvidos de papai noel vão escutar. Mas ainda olho para o céu estrelado da noite para
fazer minhas confidências e pedir por guia.
Hoje, boa parte de meus pesadelos - dormidos e acordados - ainda envolvem a vida me surpreendendo com seus truques e me levando a situações que não estavam em meu estrito roteiro e com as quais não sei lidar. Isso ainda não superei. Por mais que tenha me acostumado a tomar gols de cobertura na quadra.
Hoje, entendo porque certas pessoas moram em casas nos
morros. Não é escolha delas, é necessidade. Mas ainda não entendo como
as pessoas, as outras pessoas, que moram em casas bem melhores e bem
maiores, especialmente aquelas que vão de vez em quando trabalhar numa casa velha, franzida e
severa que é batizada de "câmara municipal", conseguem ver isso
acontecer e não fazer nada a respeito.
Hoje, ainda acho um grande pecado as pessoas perderem tempo
que podiam estar de bem estando de mal só porque não podem dizer
algumas poucas palavras. Ainda lamento a dificuldade dos meninos em
dizer certas coisas, principalmente as coisas boas. Mas
já entendo melhor como um pedido de desculpas pode custar para sair da
boca, parecendo machucar os lábios, cortar a língua, como um ácido. Entendo
porque sou uma menina e aprendi que, ao contrário do que imaginava, as meninas normalmente têm mais dificuldades
para pedir desculpas que os meninos.
Hoje, me alegro quando vejo em mim vestígios de minha
versão pequenina. Felicito-me pela geometria básica do universo que
orquestra que o grande pode conter o pequeno, mas o pequeno não contém o
grande. Alegre do grande que tem em si o pequeno. E mais alegre ainda o
pequeno, que, mesmo sem saber, não tem em si nada do grande.
Afinal, as pessoas grandes são mesmo muito bobas.
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